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quarta-feira, 19 de abril de 2017

A Produção brasileira de alimentos e as dificuldades enfrentadas para sua regularização sanitária.

Rodrigo Almeida Noleto

Engenheiro florestal, assessor técnico do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN) e coordenador do Projeto Pequenos Projetos Ecossociais no Arco do Desmatamento (Fundo Amazônia).



Nos últimos anos, quem tem acompanhado o desenvolvimento da agricultura familiar no Brasil, percebe a crescente corrente do movimento agroecológico brasileiro. Esta nova abordagem da agricultura, que busca integrar os diversos aspectos sociais, econômicos e ambientais na unidade de produção familiar, enfrenta entraves regulatórios que desconsideram o papel da agroecologia na economia e na qualidade de vida das famílias envolvidas. 

A legislação brasileira de produção de alimentos, por exemplo, não é apenas ultrapassada para atender as demandas desse setor, é inadequada, excludente e moralmente injusta com segmentos sociais que estão à margem do apoio do estado.

O marco legal da produção de alimentos é definido por uma série de leis, decretos e normas que compõem o sistema sanitário brasileiro. Este, estabelece as regras para o processamento e consumo de alimentos seguros, quer dizer, tem o papel de determinar o que é seguro para ser consumido por uma parcela significativa da população. 

Porém, o que vem determinando o padrão de segurança do alimento, é a esterilização e homogeneização nos processos de produção e transformação alimentar. De fato, é uma completa inversão de valores sociais e culturais, pois privilegia uma indústria rica e globalizada, em detrimento da ampla diversidade alimentar e do patrimônio histórico e cultural brasileiro.

Para entender a complexidade do nosso sistema sanitário atual, é necessário realizar uma distinção entre os diversos tipos de alimentos e os processos de produção que determinam o produto final. 

Esta divisão é necessária, pois dois amplos sistemas de regulação sanitária concorrem perante um perplexo setor regulado. As instituições centrais são o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), que conceituam e determinam as variáveis da alimentação brasileira.

Por exemplo, o MAPA regula todos os produtos de origem animal. Porém, caso haja determinado percentual de vegetal no doce de leite, poderia haver um questionamento sobre o órgão regulador. 

O MAPA é responsável pela regulação de “bebidas”, inclusive polpas de frutas, mas a ANVISA é responsável por “água mineral” e “alimentos processados”. No caso de alimentos prontos para consumo, como o “açaí processado”, que poderia ser considerado “bebida”, este é regulado pela ANVISA.

O MAPA é a instância central e superior de um sistema que busca padronizar os órgãos estaduais e municipais de vigilância agropecuária. A ANVISA é uma agência que coordena o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS), podendo delegar à estados e municípios suas atribuições. 

Com isso, para a regularização de um empreendimento de alimento é necessário determinar, pelo menos, o produto final e o mercado a ser acessado para iniciar uma verdadeira romaria aos órgãos licenciadores.

Essas duas variáveis, produto e mercado, possibilitariam localizar o órgão licenciador de suas atividades, que pode ser nas secretarias de saúde do município ou do estado, nos casos dos produtos relacionados ao SNVS. 

Também poderia ser nas secretarias de agricultura do município ou do estado, caso seja um produto de origem animal ou bebida. De qualquer forma, a vigilância sanitária municipal ou estadual deve regularizar a unidade de beneficiamento, caso seja alimento.

Porém, se o produtor tiver a “audácia” de atingir o mercado nacional, e este produto seja de origem animal, necessariamente teria que regularizar sua situação em um dos oito entes federados aderidos ao sistema do MAPA (SUASA). 

Assim, o produto pode ser comercializado em todo território nacional. Caso contrário, também pode buscar o registro do seu produto/empreendimento diretamente nas superintendências do MAPA, em geral, localizadas nas capitais.

Por exemplo, um produtor de leite e derivados que realize o registro do seu empreendimento no município, considerando que o município tem instituído o Sistema de Inspeção Municipal (SIM), mas que não tem sua “equivalência” ao subsistema que regula os produtos de origem animal, cuja sigla é “SISBI- POA”, tem sua comercialização restrita à área daquele município.

O SUASA foi idealizado em 2006 para descentralizar a atuação do MAPA para estados e municípios. Porém, este se tornou um verdadeiro mosaico de regulamentos e subsistemas, que normatiza a produção de insumos, alimentos de origem animal e vegetal, cada qual em diferentes setores com total distinção entre si. 

Entre os três subsistemas instituídos, apenas o SISBI-POA, que regula produtos de origem animal, existe de fato, pois é evidente o interesse econômico na comercialização de alimentos processados de origem animal. 

Além disso, os subsistemas possuem estágios diferentes de descentralização (o SUASA Vegetal permite apenas que estados e o DF solicitem sua equivalência ao sistema federal), o que dificulta ainda mais o entendimento e a interpretação da legislação.

Caso um produtor de alimentos de origem animal ainda deseje regularizar sua produção, deve buscar o Regulamento de Inspeção Industrial e Sanitária de Produtos de Origem Animal (RIISPOA), instituído por decreto em 1952. 

Este é o regulamento para a produção “agroindustrial” de alimentos, que acaba por subtrair da sociedade o papel da produção artesanal e dos processos tradicionais de produção de alimentos. 

O processo de revisão desta legislação está em curso, mas continua a segregar produtores que não se enquadram no rígido modelo de padrão agroindustrial, focado em empresas de grande porte e não na agroindústria familiar.

Na tentativa de atenuar o fosso entre os setores marginalizados e o MAPA, foi lançada a IN/MAPA 16/2015 que tenta normatizar a “agro industrialização” de produtos de origem animal nos estabelecimentos de pequeno porte, para agricultores familiares ou produtor rural, com determinado limite de área construída (250m²). 

Além disso, outras cinco cadeias serão regulamentadas (carne, pescado, leite, ovos, produtos das abelhas e derivados destas cadeias). Porém, a Instrução Normativa foi lançada à revelia de todo e qualquer setor, inclusive do corpo técnico do MAPA, que a questiona e não a reconhece, causando dificuldades no processo de regulamentação.

Para a agricultura familiar, apesar de não ter havido um processo de consulta, a IN 16/2015 promove avanços significativos, como os princípios da “razoabilidade”, “transparência de procedimentos”, “racionalização e simplificação para o registro sanitário”, entre outras, espelhadas na Resolução RDC 49 (ANVISA). 

Outra questão importante foi o reconhecimento da multifuncionalidade da unidade de produção, ou seja, mais de uma atividade produtiva pode ser realizada no mesmo ambiente. Também foi determinada a isenção do pagamento de taxas de registro e de inspeção sanitária.

Apesar dos avanços verificados, o processo de regulamentação foi iniciado com a cadeia de leite e derivados. O MAPA realizou reuniões com convidados, mas nenhum representante dos setores diretamente afetados pela norma participou das discussões. 

A única forma de participação das representações da agricultura familiar, foi promovida pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) com a realização de seminários. O MDA encaminhava as propostas e as discutia com o MAPA.

Por fim, o MAPA submeteu a proposta de IN, em 17 de dezembro de 2015, à consulta pública por 60 dias. Dificilmente representantes da agricultura familiar ou agroecologia e seus empreendimentos teriam acesso ao tipo de consulta pública praticada pelo MAPA, que é unicamente por meio eletrônico e com pouca divulgação. 

Entendo que as representações da agricultura familiar poderiam agregar pontos importantes à norma, com seu vasto conhecimento técnico e empírico, que fundamenta, muitas vezes, o conhecimento científico. 

A falta de diálogo e a soberba ideológica de uma sociedade de classes que trata com indiferença os desiguais, não poderia ser reproduzida na construção de uma política pública para a agricultura familiar e para a agroecologia.

No outro lado da moeda, mostrando que é possível ter uma legislação que atenda a maioria, tivemos o processo de construção de uma norma na ANVISA. Pela primeira vez, agricultores familiares e empreendimentos econômicos solidários, tiveram reconhecimento das suas atividades produtivas, a fim de proteger práticas, costumes, hábitos e conhecimentos tradicionais. 

Diferente de outras normas, inclusive da ANVISA, houve um amplo processo de consulta pública nas regiões, onde participaram efetivamente representantes de agricultores familiares, povos e comunidades tradicionais. 

A Resolução da Diretoria Colegiada da ANVISA n. 49/2013, buscou, de maneira geral, ser um instrumento facilitador e orientador para um público, até então, marginalizado no sistema de vigilância sanitária.

Diferente dos sistemas e subsistemas criados pelo MAPA, na vigilância sanitária, apenas um sistema central (SNVS) descentraliza as ações até o nível municipal. Nesse caso, os empreendimentos regularizados pelo município podem comercializar sua produção em todo território nacional. 

Porém, até a promulgação da RDC 49/2013, não havia qualquer distinção na avaliação discricionária dos agentes de vigilância sanitária, que salvo raras exceções, adotavam uma postura policialesca e sem qualquer razoabilidade.

A RDC 49 ainda precisa ser regulamentada em alguns estados e municípios, principalmente em relação à isenção de taxas de vigilância sanitária. Além disso, também é necessária a capacitação de agentes de fiscalização para que possam ter uma nova postura, adotando as diretrizes da “simplificação”, “racionalização”, “padronização de procedimentos” e a “razoabilidade quanto às exigências aplicadas”. 

Esta abertura propiciada pela ANVISA trouxe não apenas o reconhecimento da produção de empreendimentos familiares e artesanais, mas provocou ampla discussão nacional para a construção de novos marcos legais para a agricultura familiar, povos e comunidades tradicionais. 

Esta ainda é a esperança da população rural brasileira, produtora de alimentos saudáveis e representante dessa diversidade cultural.

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